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Segunda-feira, Setembro 16, 2024

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Afastar o diabo em dia de São Bartolomeu!

A 24 de agosto, dia em que São Bartolomeu encarna nas águas e o Diabo anda à solta, os fiéis de Oitocentos dirigiam-se às praias da Foz do Douro para o banho santo, na procura de proteção contra males de pele, gaguez ou efeitos demoníacos.

Através dele, expugnavam-se os pecados da pele anterior para dar lugar a uma alma e corpo renovados. Este ato de carácter apotropaico e profilático foi transferido para a prática cultural que hoje conhecemos: o Cortejo dos Trajes de Papel de São Bartolomeu.

Esta manifestação de carácter lúdico e espontâneo teve origem na antiga romaria, mantendo a memória do despojar dos trajes nas águas.

Partindo da imagem de São Bartolomeu da Igreja de São João da Foz do Douro, pretendemos neste estudo descortinar a evolução do culto, as práticas e rituais a que estava associada e de que forma pode ser entendida como suporte de permeabilidades culturais, reforçando a necessidade do estudo da imagem no seu contexto. Texto in .letras.up

O diabo anda à solta!

Na literatura de cordel, as referências ao dia mais aziago do ano são muitas. Escolhemos três títulos – um do ciclo do gado, um conto picaresco e uma história de exemplo – para ilustrar essa presença. Leandro Gomes de Barros, na História do Boi Misterioso, descreve o nascimento do bovino aleivoso, na data consagrada ao santo:

A vinte e quatro de agosto,

Data esta receosa,

Que é quando o Diabo pode

Soltar-se e dar uma prosa,

Pois foi nesse dia o parto

Da vaca Misteriosa.

É possível que a lembrança do massacre havido na França num 24 de agosto do distante ano de 1572, quando milhares de huguenotes, como eram chamados os protestantes franceses, foram massacrados por ordem do rei Carlos IX, tenha aquilatado o medo. O folclorista mineiro Lindolfo Gomes, no entanto, apontou indícios da presença da superstição do dia de São Bartolomeu no texto medieval Crestomatia arcaica, de J. J. Nunes.

Os heróis picarescos, famosos por suas diabruras, também são associados ao demo, a ponto de um deles, Camões, vir ao mundo no dia de São Bartolomeu. Pelo menos é o que lemos em As perguntas do rei e as respostas de Camões, de Severino Gonçalves de Oliveira, o Cirilo, que assim apresenta a origem do famoso poeta sob as vestes do pícaro:

Camões foi um enjeitado

Ninguém sabe onde nasceu

Dizem que foi encontrado

Na porta de um fariseu

Num dia santificado

Do santo Bartolomeu.

Inferno no Museu de Arte Antiga em Lisboa

Nesse dia, é proibida a caça, sob risco de o caçador deparar as aleivosias que surgem por arte do tinhoso. É o que acontece num valioso opúsculo do genial José Pacheco, a História do Caçador que foi ao Inferno.  É uma história exemplar, semelhante a tantas outras narradas desde a Idade Média, e plantadas em solo brasílico pela catequese jesuítica:

Um homem que existia

Naquela época passada

Tomou como profissão

A diversão de caçada —

Às vezes caçava só,

Por lhe faltar camarada.

Uma vez, estava só,

Cumprindo o destino seu.

Um cão que lhe acompanhava

Uivou, ganiu e correu —

Com menos de dois minutos,

Ele desapareceu.

Tinha o nome de Valente,

Este nome que quadrava,

Porque ele, estando solto,

Na porta ninguém passava,

Entrava em furna de pedra,

Puxava onça e matava.

Raposa e gato do mato

Não pegavam criação.

No terreiro de seu dono

Não encostava ladrão.

Vizinhos ali de perto

Tinham a mesma proteção.

Porém, deixemos ficar

Valente e o furor seu,

Tratemos sobre a história

De que forma aconteceu,

Num dia que muita gente

Teme São Bartolomeu.

O Inferno segundo Bosch

O caçador não encontra o cachorro e, internando-se numa furna de pedra, acaba chegando ao local do eterno suplício:

E transformou-se o gemido

Em choros descomunais,

Qual um ente que sofria

Sob penas infernais.

Então sua consciência

Pediu pra não seguir mais.

(…)

Chegou uma mulher alva,

Com um rosário na mão,

Toda vestida de azul,

Encostou-se no portão

E disse assim: — Acompanha-me,

Vim salvar-te do vulcão!

Satanás ainda disse,

Com seu gesto triste feio:

— Também aquela mulher,

Se mete em todo paleio!

Eu tenho raiva de casa

Que toma o que é alheio!

Estes versos, presentes em autos populares, evidentemente adaptados, não fogem à regra e repercutem os valores próprios das sociedades patriarcais. Ao final, um alerta do poeta:

Leitor, se és caçador,

Atende um conselho meu —

No dia que se disser:

“Hoje é São Bartolomeu”,

Guarda tua munição,

Esconde o teu mosquetão,

Amarra o tubarão teu.

E, na última estrofe, uma imprecação aos que não ajudarem, comprando-lhe o folheto. Esta é uma reminiscência dos povos celtas, para os quais os bardos, donos do poder da palavra, eram temidos até pelos mais valorosos guerreiros, que não ousavam ofendê-los. Muitas lendas assombrosas ligadas à caça têm origem entre estes povos. 

Quem comprar este livrinho,

Terá Deus por defensor —

E quem não comprar terá

O diabo por protetor!

Pra onde for se atrasa,          

Finda parando na casa

Que parou o caçador!

Nota: São Bartolomeu, também chamado Natanael, foi um dos discípulos de Jesus. Era um israelita devoto até o encontro com o Mestre. Teria pregado o evangelho na Índia. O martirológio romano informa que o apóstolo morreu por esfolamento em Albanópolis, atual Derbent, na região do Cáucaso, numa das perseguições movidas aos cristãos, em 51 d.C.

Michelangelo, no teto da Capela Sistina, pintou-o segurando a própria pele com a mão esquerda, tendo na outra uma espada. Talvez a associação deste santo à caça – e à interdição no dia dedicado a ele – se deva à forma com que é retratado em seu suplício, uma vez que as presas abatidas pelos caçadores são também esfoladas.

As histórias aqui narradas encontram-se neste livro: História do boi misterioso

Imagem principal com original da foto em museu-dos-demonios-em-kaunas/

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