Ou como “Todo o estômago, bem regulado, produz um génio”
Convinha-me, pois, vassoirar da minha testada uma influência odiosa: era o regedor da freguesia, que nunca me havia perdoado os artigos em que lhe excruciei a estúpida ferocidade contra recrutas.
A segunda vítima, destinada ao sacrifício da minha pachorrenta paz, era o vigário.
Enquanto ao regedor, as dificuldades deviam ser enormes, visto que todos os governos tinham achado nele um galopim, que vingava trezentos e vinte sufrágios.
Era preciso contaminar-lhe os créditos com a broca da retórica.
Acerquei-me de três lavradores influentes da freguesia, expus-lhes a decadência do país, e a inevitável perda da independência nacional, se continuássemos a dar o nosso voto irracionalmente a deputados da confiança do regedor Dei em minha casa prelecções de direito constitucional a estes e outros lavradores levados pelos primeiros.
Feri faíscas naquelas cabeças tapadas como pedreiras de mármore negro e posso . E assim se prova que o órgão mais sensível è eloquência é ela e afoutadamente asseverar que nunca a eloquência fez maiores milagres. Falei-lhes em nome do estômago(…)
Compreenderam o apólogo melhor que eu mesmo e pediram-me com entusiasmo a repetição da história. O meu fito, remendando o meu ilustre predecessor no doutrinamento da plebe, mirava a convencê-la de que o regedor da freguesia era o cancro do estômago social.
Facto admirável do instinto.
Quando eu disse isto, levaram todos a mão à barriga. E assim se prova que o órgão mais sensível è eloquência é ela e que a humanidade sofredora é um estômago desconcertado, e bem assim se prova que todos os regedores facciosos podem ser banidos da confiança popular mediante o argumento do cancro, que eu ofereço a todas as oposições.
Acertou de estar próxima a luta eleitoral.
O regedor bateu às portas dos eleitores com o macete das listas e encontrou em cada lavrador um doutrinário, um cidadão que falava da liberdade do sufrágio com muito menos parvoiçadas que a maior parte dos jornalistas.
Enraivecido contra as minhas sugestões, o funcionário oficiou ao governador civil pedindo-lhe autorização para me prender.
O governador civil deu a ordem pedida, mandando ao secretário que a lavrasse, e citou a lei do código eleitoral que me aplicava a captura.
Ora, como quer que o secretário folheasse o código e não encontrasse o artigo, a autoridade sujperior do distrito oficiou ao regedor lamentando com ele a impossibilidade da minha prisão.
Seguiu-se perder o governo as eleições e o regedor adoeceu de maleitas. Passados meses, caiu o ministério, caíram as autoridades e eu fui nomeado regedor.
Eis aqui o meu primeiro pulo na carreira política.
O meu velho inimigo, quando recebeu o ofício da demissão, tremia como Marino Faliero ouvindo as fatais badaladas de S. marcos. Um meu criado – para nada faltar à comparação com os desastre do infausto doge – foi ao campanário da igreja e repinicou o sino.
Ao mesmo tempo, o meu vizinho Joaquim do Quinchoso atirou aos astros dois foguetes de lágrimas, que tinha sisado ao mordomo da gesta do orago.
Na aldeia próxima, saiu à rua o tio Manuel da Bouça com o bombo e o meu compadre João da Fonte, que fora músico das milícias de Mirandela, acordou os ecos das serras com o seu trompão.
O ex-regedor, escorrendo o suor glacial da morte, ergueu-se sobre os joelhos no seu catre, inteiriçou os braços descarnados; e quando ia morrer nos braços do vigário, comeu uma perna de galinha e salvou-se
Mais um argumento da capacidade do estômago para afogar em si as decepções da política!
Como a câmara electiva fosse dissolvida, decretou o poder executivo novas eleições. Deram–se contra mim os pés do vigário e o ex-regedor.
A influência do primeiro era temível.
Para contrariar-lha nas vésperas do sufrágio, industriei o meu fiel criado a prender a consciência política do padre com o cabresto do garrano do mesmo.
O leitor acha dura de entender esta metáfora. Foi assim: o meu criado entrou numa bouça, onde pastava o garrano; tirou-o para o monte; desceu com ele a garganta de duas montanhas e foi prendê-lo num recôncavo de matagal onde o vigário só pudesse encontrá-lo com tardias informações dalgum pastor desgarrado por aquelas brenhas.
Cumpre, porém, dizer em pró da minha equidade que o garrano indigno de ser castigado com o amo recebia todas as noites porção de feno e bebia do arroio límpido que lhe banhava os pés.
O vigário, azoado com a perda, e tolhido de ir arengar aos paroquianos das aldeias vizinhas, sentiu-se baldo de entusiasmo e patriotismo e deixou o seu correlegionário em campo.
Venci as eleições por espantosa maioria.
Disse-o o sino a reboar por aquelas quebradas; disseram-no as violas e zabumbas de sete aldeias: o ar incendiou-se de foguetes de três estalos, e eu fiz subir às nuvens um balão, feito de jornais, em que eu fora redactor.
O garrano voltou, nesse mesmo dia, à porta do vigário, que o estreitou ao peito fervoroso amplexo e exclamou:
- Fizeste-me perder a eleição, mas para outra vez a ganharemos ! Vem, filho pródigo!
- Por Camilo Castelo Branco, in Coração, Cabeça e Estômago, editora Guerra e Paz, Editores, Lda, 2024, página 171 a 173