Na cidade a vida corria, desprendida de ansiedades, cumprindo a regras ditadas pelas normas aplicadas pelos senhores do espaço: chegavam em latim e traziam com elas a força do império.
Ao ritmo do sol e perante as sombras do dia, a esperança traduzia-se em palavras ditas em surdina, para não chegarem à cidade depressa de mais. Até porque Deus não facilitava a coisa, apenas a anunciara mas demorava a acontecer.
Foi assim durante séculos. Mas a palavra – essa coisa mágica que nos faz existir – continuava a brotar da consciência e era trazida para a conversa: ides perceber o sentido da coisa!
A cidade desconfiava dos rumores, e mandou investigar a narrativa não fosse ela colocar em dúvida o exército de certezas que controlava Jerusalém.

 (1)

Um dia, Maria e José, o carpinteiro, deram a notícia aos amigos e prepararam-se para acolher a novidade que nem eles percebiam muito bem. Mas é sempre assim com a verdade. Ela manifesta-se ao mesmo tempo que se esconde. E quando se revela é sempre incompleta.
Porque o tempo da verdade não nos pertence, buscámo-la da mesma maneira que nos protegemos do vento: com cuidado, na espera de a percebermos num caminho que não tem fim.
Era preciso pois preparar um lugar para o menino nascer, mas na ocasião não havia espaço em nenhum alojamento local, e a sorte ditou um palheiro para que Maria fosse mãe, criando uma fonte de luz.
Mas as noticias são um perigo, sobretudo quando misturadas com boatos, e chegou à cidade do conforto, protectora da linguagem oficial, do império, e sobretudo da linguagem religiosa, da sinagoga.
Mas quem é que autorizou esse menino a nascer? Quem é esse carpinteiro e mulher Maria para serem pais do “filho” de um Deus que é nosso?
O rebuliço foi muito. Mas tinha apenas começado. E eles não sabiam isso.
O menino cresceu, fez-se homem e começou a falar.
Esta coisa do falar costuma ser incómoda – sobretudo para quem fala, mas tantas vezes para quem ouve. Na idade adulta, o menino partilhou a vida com os amigos e começou a falar de coisas que ninguém percebida nada. Falava, falava, mas nada.

O caminho da verdade

É assim o caminho da verdade. Para a encontrarmos temos de esgadanhar na floresta, à espera que um raio de luz brilhe entre as árvores para começarmos a ver a identidade da coisa.
Então, o menino, sentou à mesa os seus amigos, deixou-se de discursos e começou a partir o pão e a partilhar o vinho. Comeram e beberam e, no fim, pediu-lhes que fizessem isso mais vezes e que se lembrassem dele.
Esta parte foi fácil. Estavam todos bem dispostos, dado que comidos e bebidos. E lembrarem-se dele, porque não?
Esta coisa de reunir os amigos, partilhar o pão e não pedir nada em troca, tornou-se habitual e o grupo cresceu – já eram 12 a acompanhar o homem.
Mas mais que dois é comício…. e a coisa começou a ser falada na cidade. O incenso dos corredores começou a incomodar e já não se aceitava como perfume, pois a notícia das refeições espalhou-se e ninguém percebia o que estava a acontecer.
Para se perceber a verdade é preciso tempo. Ela manifesta-se às escondidas porque sabe que não a percebemos depressa.
Os donos da palavra puseram-se em campo para acompanhar os ditos do homem (naquele tempo não havia facebook), e regressavam à cidade totalmente confundidos. Como relatariam ao chefe o que o homem andava a fazer e a dizer, se eles não percebiam nada do que se passava?
Nos relatos optaram por o considerar louco. Era mais fácil e arrumava-se o assunto.

O homem não se calou

Mas o homem não se calou e já tinha mais que 12 a seguirem-no. Muita gente e até mulheres e crianças – diziam os cronistas do reino. O que, sem saberem, já era um avanço, pois as mulheres e crianças passaram a ser considerados nos relatos oficiais – coisa inédita naquele tempo.
Cumpridor das regras do tempo, o menino entrou no templo. Não gostou. Deu um murro na mesa e com o apoio dos seus expulsou os sacerdotes da verdade oficial. Colocou-os na rua e ganhou uma guerra.
Assim começou a campanha eleitoral num povo subjugado à longínqua força imperial, vinda de Roma.
A cidade nunca mais foi a mesma. Entrara nela a força do vento do deserto, indomável, que destrói o acessório e apenas poupa o que verdadeiramente interessa.
Os funcionários do altar não gostaram da brincadeira. Sobretudo não toleravam que o homem fosse acompanhado cada vez por mais adeptos e perceberam que a coisa estava difícil.
Pegaram nos relatos dos escribas do imperador e encontraram lá registado que o homem era louco. Vinha mesmo a calhar. Era louco, mais que louco, ele até se dizia filho de Deus!
Promoveram assim algumas reuniões, tipo assembleia municipal, para manobrarem um “consenso” na procura de solução para os problemas imediatos. E assim foi.
A coisa complicou-se de tal maneira que o senhor do poder, um romano chamado Herodes, mandou chamar o homem para ver se percebia o que se estava a passar. Até porque o imperador em Roma não se sentia satisfeito com os relatos que lhe chegaram, e desconfiava que a loucura do homem fosse algo mais complicado. Ele nem falava latim!
O menino tornado homem subiu as escadas do poder e sentou-se para responder às dúvidas que assolavam a cidade. Herodes pretendia apenas descobrir a maneira de convencer o louco a passar para o seu lado, ele que precisava de acalmar o povo e enviar essa boa notícia para o chefe.
Mas a verdade tem a cor da água… Intolerável para quem governa, libertadora para quem corre o risco.
O homem começou por dizer que não era da laia dele. Apesar de uma leve sensação de rebeldia, Herodes não levou a mal. De facto também não era como ele. Nisso estavam de acordo e podia ser um bom início de conversa.
A coisa, entretanto, complicou-se. O romano quis saber mais. E o homem respondeu que era filho do vento novo que renovaria a cidade – lugar de todos, sem senhores e súbditos, iluminados por um sol comum.
A conversa foi longa mas não chegou a consenso. A hora adiantada apontava para o almoço do meio-dia e era melhor terminar por ali.
Reuniu Herodes com os seus conselheiros, enquanto comiam, e decidiram que era melhor lavar as mãos, considerar a polémica “coisa pequena” e passar a decisão por um referendo no cumprimento das tradições locais: dar a escolher ao povo por quem optar entre a vida e a morte.
O povo animado participou no festim. Os sacerdotes incomodados com a vento do deserto fizeram pressão por um conhecido “amigo do alheio” que se safou. E o homem que partia a pão e partilhava o vinho foi escolhido para finar na cruz.
O céu escureceu, e a verdade ficou escondida porque perdeu o calor da luz do sol. E Jesus morreu.
(2)
Foi sepultado, envolto em lençóis, pelo carinho de duas mulheres.
Os sacerdotes subiram de novo ao altar, cobriram a mesa com uma toalha, não partilharam o pão, mas voltaram a proclamar a verdade conveniente.
Por Arnaldo Meireles
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(1)Jesus na corte de Herodes1308-11. Por Duccio, atualmente no Museo dell Opera del Duomo
(2)Caravaggio, 1603/04, óleo sobre tela.
O meu menino Jesus – conto de Natal