Deste exercício recebeu as palmas do Prémio Nobel da Literatura, evento lembrado na nossa terra numa sessão literária orientada por Manuela Bentes acompanhada por José Carlos Vasconcelos.

Revisitar os textos de José Saramago foi assim um exercício de prazer intelectual experimentado por uma plateia interessada embora despovoada de professores mais ocupados na preparação da “noite das bruxas” – evento cultural muito arreigado na nossa terra, como é do domínio público.

Mas voltando ao centro da coisa, foram-nos explicados pelos intervenientes os caminhos percorridos pelo autor que, sendo ateu confesso e dedicado, ressuscita sempre que alguém o lê, sentindo-se o leitor convidado para uma aventura que sendo nublosa no início se aclara com o tempo.

Entrar em Saramago, como Manuela Bentes nos explicou é uma experiência que precisando de tempo se assemelha à descoberta das clareiras na floresta quando lá (perdidos) encontramos os raios de sol.

E com eles, vamos tecendo, na leitura, o caminho do que Saramago é – somos aquilo que falamos e por isso escrevemos.

Dispensados que estamos da espuma dos dias na leitura do autor, ganhamos tempo e perspectiva para entender a sua obra que tendo – em vida – sido polémica dada a incomodidade provocada na narrativa oficial, conveniente e premente! se liberta agora num esplendor de clareza.

Esta clareza tem o cuidado de dispensar a sabedoria dos sábios, numa provocação (revolucionária, embora escondida) de definir um caminho de libertação das coisas simples iniciado e descoberto quando partilhou o colo do seu avô e o carinho da sua avó.

Apenas isto e que é muito, como sabemos, se nos lembrarmos das sensações que nós mesmos guardamos no buraco mais íntimo da memória. Ele como nós encontrou na “sabedoria dos ignorantes” o princípio da escrita sobre o que verdadeiramente interessa: como vivemos, para onde vamos e o que fazemos da vida.

Manuela Bentes explicou isto muito bem, na caracterização feita dos “personagens” desenhados pelo autor. Eles são pintura à espera de interpretação e análise permitindo que neles descubramos os caminhos lá impressos.

José Carlos Vasconcelos

Esta sessão teve também a participação de José Carlos Vasconcelos, escritor e jornalista, que, vivendo em Lisboa é da nossa terra, partilhou com Saramago as dores de parto do escritor.

Vasconcelos tem a delicadeza do voo das andorinhas quando intervém em público apagando-se voluntariamente na afirmação da mensagem que partilha. Estava ali para falar de experiências do dia com o autor, dando a conhecer aos presentes dados históricos do caminho percorrido por ambos percorrido.

Na nossa terra precisamos de descobrir o tesouro que habita Vasconcelos e ouvir dele as “estórias” que devemos registar, para memória futura, na defesa da nossa civilização democrática.

A partir (e à volta dele) do Jornal de Letras, da sua experiência como jornalista em diversos jornais e na RTP, o património da memória deste nosso conterrâneo precisa de ser partilhado e ficar disponível para todos.

A história da democracia portuguesa pode/deve ser escrita. Dá para adivinhar que ninguém tem mais “segredos” para contar do que ele.

Por Arnaldo Meireles

A respiração de Saramago, segundo Manuela Bentes

Cartoon: de www.henricarton.com

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“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»”

 (“Carta para Josefa, minha avó” José Saramago)

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